Esse texto foi escrito em 2019 para a matéria de "Léxico e Terminologia" em minha graduação na UnB.
As perguntas que guiam esse trabalho são:
O que são drogas?
Quem define o que são drogas?
Quais definições de drogas estamos utilizando para a criação de políticas públicas em nosso país?
"Droga é o que dizem que é droga"
– Marzin, roda de conversa do coletivo aroeira em 2021.
Objetivo geral
Esse texto surge de um esforço de compreensão dos conceitos e dos termos atualmente utilizados para a construção de políticas sobre drogas no Brasil. Com ênfase nos questionamentos no âmbito da política pública, este trabalho se propõe a reunir e questionar definições do termo "droga" e termos afins utilizados nas principais instituições nacionais e internacionais.
Nosso objetivo é compreender a origem dos conceitos utilizados, sua legitimidade e consequentes imposições sociais.
Objetivos específicos
Analisar a maneira como nossos aparatos de Estado constroem discursos e ideias é o exemplo de atividade que pode nos auxiliar a melhor exercer nossa cidadania. A possibilidade de refletir sobre a escolha de vocabulários que integram nossas políticas públicas é ponto de partida para que também possamos melhor distinguir quais as ideologias encontram-se por detrás de cada ação.
Para as instituições que lidam com o tema "drogas" do ponto de vista social, seja a partir da área da saúde, educação ou segurança pública, é basal que compreenda-se, primeiramente, o significado do termo "droga". O ideal seria que profissionais (e pessoas que usam drogas) que trabalham diretamente com o tema compreendam quais são as definições normalmente utilizadas para o termo "droga" ou que possam refletir coletivamente sobre seus significados. Além disso, é importante saber as origens de tais definições para que seja possível contextualizar de maneira mais apropriada o cenário atual de nossas políticas públicas.
Justificativa
Ao analisar a socioterminologia do termo "droga" e suas utilizações, é possível elaborar uma crítica sobre as estruturas de poder que regem as políticas públicas sobre drogas em nossa sociedade. No Brasil, a temática das drogas abarca políticas que afetam todas as camadas da sociedade transversalmente. Assim, melhor compreender o que são as drogas e quais seus papéis na história da humanidade pode nos ajudar a criar políticas mais efetivas em relação à saúde, segurança e educação. Essa compreensão pode originar-se terminologicamente, ao analisarmos criticamente o termo e seus conceitos.
Problematização
4.1 Os órgãos nacionais
Nossa análise começa através das definições utilizadas pelos órgãos e instituições de nosso país. A surpresa começa por aqui, pois, justamente, para remetemo-nos às quaisquer noções de "droga" no âmbito jurídico ou da saúde nacional deparamo-nos com definições internacionais. Tanto o Ministério da Saúde, quanto a constituição brasileira e órgãos reguladores de substâncias, como a Anvisa, utilizam definições internacionais, principalmente advindas da resolução da Convenção Única Sobre Entorpecentes, realizada em 1961.
Isso é importante de ser considerado, pois a utilização praticamente absoluta das definições internacionais implica em uma ausência de reflexão interna aprofundada sobre a temática.
"No Brasil, a legislação define como droga "as substâncias ou produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União" segundo o parágrafo único do art. 1.º da Lei n.º 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Lei de Drogas).[3] Isto significa dizer que as normas penais que tratam do usuário, do dependente e do traficante são consideradas normas penais em branco. Atualmente, no país, são consideradas drogas todos os produtos e substâncias listados na Portaria n.º SVS/MS 344/98 do Ministério da Saúde.[4]"
Eis aqui a Portaria do Ministério da Saúde citada acima :
(...)
"Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial.
O Secretário de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, no uso de suas atribuições e considerando a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 (Decreto n.º 54.216/64), a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971 (Decreto n.º 79.388/77), a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988 (Decreto n.º 154/91), o Decreto-Lei n.º 891/38, o Decreto-Lei n.º 157/67, a Lei n.º 5.991/73, a Lei n.º 6.360/76, a Lei n.º 6.368/76, a Lei n.º 6.437/77, o Decreto n.º 74.170/74, o Decreto n.º 79.094/77, o Decreto n.º 78.992/76 e as Resoluções GMC n.º 24/98 e n.º 27/98, resolve:
(...)"
Aqui seguem as definições do regulamento técnico da ANVISA sobre o tema:
Droga - Substância ou matéria-prima que tenha finalidade medicamentosa ou sanitária;
Entorpecente - Substância que pode determinar dependência física ou psíquica relacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Convenção Única sobre Entorpecentes, reproduzidas nos anexos deste Regulamento Técnico;
Medicamento - Produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico;
Psicotrópico - Substância que pode determinar dependência física ou psíquica e relacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, reproduzidas nos anexos deste Regulamento Técnico;
(disponível no site da ANVISA)
Por mais simplistas que as definições da ANVISA possam parecer, são dos textos nacionais oficiais mais detalhados sobre o léxico da temática.
A postura interna da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (SENAD) é similar. Diante da problemática conceitual e terminológica do tema "Drogas", a Secretaria publicou um Glossário de "álcool e outras drogas" (2010), onde é inclusive citado no prefácio do glossário:
"Por exemplo, a própria palavra "droga" pode assumir significados diversos para pessoas diferentes: um medicamento, uma substância usada para diversão, um veneno, algo que “vicia”. Às vezes, ao denominarmos de “drogas” algumas substâncias que, do ponto de vista técnico, poderiam perfeitamente ser entendidas como tal, geramos discordância e até protestos. Mas não é de se estranhar que haja esse tipo de desentendimentos, se as pessoas usam a mesma palavra para significados tão diversos" (Glossário de álcool e drogas )
Mas, na verdade, esse glossário oficial é apenas uma tradução (editada pela SENAD) do glossário oficial da OMS. Os órgãos nacionais contam mais uma vez então, com as vozes internacionais para falar sobre o tema.
Compreende-se que as opiniões emitidas por grandes instituições internacionais sejam levadas em consideração e tomadas como legítimas. O trabalho de instituições como a OMS são, de fato, de extrema relevância no contexto atual, em que o ramo da "saúde" é, em sua maioria, considerado tarefa exclusiva dos Estados e esses, ao redor do mundo, nem sempre reproduzem experiências democráticas. Daí compreende-se a importância que órgãos internacionais podem ter para garantir atividades mínimas de saúde em diversos locais. Ao mesmo tempo, não é possível desvincular grandes instituições internacionais do contexto mercadológico, lobista e capitalista em que vivemos. Isso significa que também essas instituições, preocupadas com a "saúde da população mundial" estão muitas vezes a serviço, por exemplo, de estruturas de poder maiores, como é o caso das empresas da indústria farmacêutica.
Daí a importância de garantir uma autonomia mínima sobre a produção de conhecimento e a discussão sobre a promoção de saúde a nível nacional. É importante que tenhamos em conta as reais necessidades de saúde da população de nosso país, para prevenir ou tentar diminuir o efeito que manipulações políticas internacionais possam ter sobre a vida da população.
4.2 Os órgãos Internacionais
Já que a maioria de nossas políticas nacionais utiliza-se de definições e nomenclaturas internacionais para decidir o que é droga e o que não é, ou quais drogas são próprias para o consumo e quais não, é importante revisar as posturas das Instituições e convenções normativas que elaboraram e legitimaram, a nível mundial, a proibição de determinadas substâncias.
Convenção Única Sobre Entorpecentes
Essa convenção, ocorrida em 1961, é uma das peças-chave para a compreensão do panorama atual acerca da temática. Neste encontro, 115 Estados estavam presentes e 77 delegações assinaram o documento que proíbe 108 plantas e substâncias naturais e sintéticas de serem consumidas e/ou comercializadas pelas nações. A Convenção Única proibiu a produção e fornecimento de drogas (narcóticas) e outras drogas com efeitos similares, exceto se com permissão e licença para propósitos específicos como tratamentos médicos e pesquisa científica.
Foi nesta convenção que se iniciou, notavelmente, a guerra às drogas. Uma guerra que mobiliza esforços internacionais e nacionais para exterminar determinadas plantas e substâncias, mas que, afinal, mata pessoas.
Nenhuma das políticas adotadas através da Convenção demonstrou-se minimamente eficaz para a promoção de saúde de pessoas que usam drogas, muito pelo contrário, a própria proibição, então estabelecida, é o fator que mais gera danos à população, números muito mais catastróficos que os causados pelas próprias "drogas". A guerra às drogas mata mais pessoas anualmente do que mortes causadas por consumo de substâncias ilícitas. Além de legitimar constitucionalmente o genocídio de populações específicas (como a juventude pobre e negra do Brasil), a proibição, ao colocar usuárias e usuários dentro da ilegalidade, dificulta o acesso de pessoas com problemas de dependência aos serviços de saúde. A proibição dificulta o controle de qualidade das substâncias ingeridas e também o acesso à educação de qualidade sobre o tema. Dificultar o acesso à informação é dificultar o exercício da saúde da/do usuária para com a substância e si mesma. Fornecer vocabulário e informar sobre as características de cada substância ajuda a reduzir danos para quem a consome. É importante que saibamos como o álcool ou o café interagem com nosso organismo, para que saibamos como/quando/onde melhor utilizá-los, por exemplo.
Se não debatemos o que de fato são drogas e as marginalizamos como ilegais, dificultando diálogos também sobre seus efeitos, interações fisiológicas, psicoterapêuticas, etc, obscurecemos uma discussão muito importante em nossa sociedade e permanecemos alheios aos motivos econômicos que impulsionam a proibição. É importante que o processo de "obscurecimento" desses conceitos seja esclarecido.
As definições do documento final da Convenção Única de Entorpecentes, são:
j) "Entorpecente" é tôda substância natural ou sintética que figure nas listas I e II;
u) "Lista I", "Lista II", "Lista III" e "Lista IV" são as listas de entorpecentes ou preparados que com essa numeração, se anexam à presente Convenção com as modificações que se lhe introduzam periodicamente segundo o disposto no Artigo 3;
(Portal da Câmara dos Deputados – a ONU Brasil não possui uma tradução oficial do documento da Convenção, sendo esta tradução a versão utilizada pela Câmara dos Deputados.
Publicação: Diário Oficial da União - Seção 1 - 1/9/1964, Página 7801 [Publicação Original])
As listas anexadas das resoluções não possuem, no entanto, qualquer explicação referente ao que seriam entorpecentes, há apenas uma longa lista de substâncias e plantas. O documento oficial da resolução final da Convenção Única sobre Entorpecentes não possui, portanto, qualquer descrição do que seriam drogas, narcóticos ou entorpecentes (apenas uma enumeração, sem explicações adicionais).
OMS
O Órgão Mundial de Saúde (OMS ou "WHO", World Health Organization) possui parte de seu site dedicada exclusivamente à terminologia e classificação, onde é possível encontrar o léxico de termos de álcool e drogas, traduzido para o português pela SENAD como o "Glossário de Álcool e Drogas", em que está definido:
"Droga: Um termo de uso variado. Em medicina, refere-se a qualquer substância com o potencial de prevenir ou curar doenças ou aumentar o bem estar físico ou mental; em farmacologia, refere-se a qualquer agente químico que altera os processos bioquímicos e fisiológicos de tecidos ou organismos. Portanto, droga é uma substância que é, ou pode ser, incluída numa farmacopéia.
Na linguagem comum, o termo se refere especificamente a drogas psicoativas e em geral ainda mais especificamente às drogas ilícitas, as quais têm um uso não médico além de qualquer uso médico. As classificações profissionais 58 D 60 (por exemplo: “álcool e outras drogas”) normalmente procuram indicar que a cafeína, o tabaco, o álcool e outras substâncias de uso habitual não médico sejam também enquadradas como drogas, na medida em que elas são consumidas, pelo menos em parte, por seus efeitos psicoativos."
E a palavra "Entorpecente" sequer consta no glossário. No texto original, o equivalente a palavra "entorpecente" seria "Narcotic" (já que a Convenção Única Sobre Entorpecentes é traduzida do inglês: "Single Convention on Narcotic Drugs"). Segue a definição da tradução:
"Narcótico: Um agente químico que induz estupor, coma ou insensibilidade à dor. O termo refere-se, em geral, a opiáceos ou opióides chamados analgésicos narcóticos. Na linguagem comum ou na terminologia legal é muitas vezes usado com pouco rigor para significar drogas ilegais independentemente de sua farmacologia. Por exemplo, a legislação que controla os narcóticos no Canadá, Estados Unidos e alguns outros países inclui a cocaína e a maconha, além dos opióides. Devido a estes vários significados, é preferível usar termos de conteúdo mais específico (por exemplo, opióide)."
"É preferível usar termos de conteúdo mais específico", consta no glossário da OMS. No entanto, essa generalização não foi levada em conta na criação de políticas internacionais de controle. Assim, a Convenção Única assinou uma resolução final, que declara uma guerra global contra as drogas (ou "entorpecentes", ou "narcóticos") sem nem sequer bem conceituá-los, ou diferenciá-los de tantas outras substâncias que tão bem se encaixam nas definições dos termos.
As políticas públicas nacionais que surgiram a partir dessa Convenção são inúmeras: em relação à segurança (guerra ao tráfico/marginalização de populações/legitimação de genocídios, encarceramento em massa), em relação à saúde (programas de incentivo à abstinência/marginalização, surgimento de manicômios e comunidades terapêuticas e descuido da população usuária dependente), de educação (o tema, atualmente tratado como uma questão de segurança pública, é abordado com foco de atenção na repressão mais que no cuidado a/o usuária). Que em nenhum local tenhamos bem conceituado o termo "droga", do que define algo como droga, dificulta a reflexão do porquê da proibição de algumas substâncias e de outras não. Em última instância, não questionar-se sobre os motivos da proibição muito serve ao status quo do aparato da guerra às drogas que já não possui evidências científicas, estatísticas ou lógicas do discurso da proibição a favor da saúde da população.
Dessas reflexões surge a importância de análises socioterminológicas quanto ao uso do termos "drogas". A análise e reflexão sobre a linguagem utilizada, principalmente socialmente e enquanto cidadãos, deve ser feita, para que possamos através desse aparato, melhor compreender nossas políticas e atuações.
Metodologia
Essa proposta de análise foi construída através de pesquisas realizadas nos portais (sites) dos órgãos e instituições acima citados.
Também a leitura de textos como "La drogue, la loi et le raison", de François-Xavier Colle, foram de importância para estabelecer posicionamentos mais críticos perante o tema.
Uma vez que as definições e os dados foram coletados e reunidos no presente documento, a escolha de como relatar o tema foi feita (em qual ordem apresentar os dados, por exemplo) e a análise finalizada (embora deva permanecer curiosa em pesquisas futuras).
Ps.: a melhor definição do que é droga ainda é a do Marzin: "droga é o que falam que é droga"
Comments