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  • Foto do escritorEmily Bandeira

Justiça Linguística sentimental

Atualizado: 11 de set. de 2023

Saí de bicicleta agora há pouco, disse a mim mesma que iria ultrapassar os limites dos caminhos conhecidos. Sucesso. Pedalei pelo eixo monumental até não saber exatamente onde eu estava ou o que viria à minha frente.


Pensei durante o fim de semana que precisava explorar um pouco mais meu ao redor com minha bicicleta. Como se o alargar de minha percepção geográfica pudesse me prover de outros alargamentos internos. Algo similar ao processo próprio de viajar.


E, em uma tarde agradável em minha nova casa, percebo como meus processos mentais estão mais letárgicos do que eu desejaria para essa segunda-feira. E não é por conta da distração sempre iminente dos prazeres do lar, mas, para além disso, por uma dissociação de sentidos internos que não me permitia ação em direção a nada.


Por isso, sair de bike, para falar só, em paz e em voz alta, para suar, para ver a rua através das rodas, para encontrar meu eixo em movimento. Funcionou. Falei sozinha (sim, em voz alta, possivelmente inclusive em outras línguas) e tentarei escrever aqui parte do processo que pode me ajudar a voltar a mim mesma em termos profissionais.


Nesses breves períodos, entre um freela e outro, entre uma resposta e outra, entre uma investida e outra, me encontro com o maior dos privilégios: tempo. Tempo para decidir onde depositar as próximas energias, pensar sobre o que quero, sobre o que fazer, em qual direção seguir. E do pouco que sei, sei que quero ir em direção aos trabalhos que brincam de justiça linguística. É das coisas que me parece fazer sentido, é coerente com minha história e foi um dos temas que me fez cosquinhas na mente, me fez querer estudar mais a respeito.


Só que a medida em que eu estudava, uma distância surgia dentro de mim. É que meus propósitos iniciais possuem um pulso ligeiramente diferente do pulso comum que a JL parece levar. A JL fala sobre a não-dominância de línguas dominantes (que não coincidentemente são eurocêntricas e possuem um peso político que é opressor), ela fala sobre o acesso de mais eventos, estudos, trocas, trabalhos e materiais para as pessoas que não falam essas línguas e sendo bastante reducionista aqui, fala sobre mais tradução, mais interpretação. E acho importantíssimo, sendo eu, inclusive, mais uma das tradutoras-formiguinhas que topam pensar e guiar essa missão. Mas parte de meu fascínio com a abertura de ampliar o debate sobre línguas e o acesso à elas parece muitas vezes vir no sentido contrário: o de facilitar o acesso de pessoas a essas línguas dominantes e amplamente usadas não apenas no cenário de justiça transformativa mas também no cenário cultural e acadêmico.


Para justificar esse desejo, um retorno à infância.

(foto de mestre vitalino por Pierre Verger)


Eu nasci e cresci em uma cidade do agreste pernambucano, Caruaru, nos anos 90. Sou mais uma das misturas de referências do interior do país com o mundo globalizado do começo dos anos 2000. Sou privilegiada por uma série de motivos (pele branca, classe média) mas reconheço como o maior de meus privilégios o acesso ao tempo e à educação. Nem meu pai nem minha mãe fizeram ensino superior, minha família não vai me deixar terras, heranças ou recursos que me garantam uma vida confortável no futuro, a não ser esse valiosíssimo recurso: a educação.


Ela é a chave pela qual posso tentar buscar/construir meus recursos, meu conforto, minha vida saudável e minhas garantias. Ela é a chave pela qual meu irmão e minha irmã mais velhos acessaram suas próprias seguranças. E é por ela que tenho forças para querer mudar as coisas. Porque eu acredito de um modo, até mesmo muito romântico, que aprender é o que nos salva. Aprender e continuar aprendendo, de diversas maneiras, metodologias, epistemologias, experiências de vida, trocas, pensações pessoais e coletivas, com e sem a ajuda dos músculos do corpo, aprender pelo aprender, pela curiosidade, pelo desejo de ir além no tecido da teia mental que nos conecta a nossas ações, nossos prazeres, nossas linguagens internas e nossos modos de perceber a realidade e viver a vida.


Só que para se educar, aprender, assim como para se entreter, se deleitar, brincar, é preciso um bocado de coisa. É preciso ter casa, comida, saúde, segurança, é preciso ter tempo. É preciso não ser explorada a todo o tempo, é preciso que as pessoas à volta possam aprender junto, é preciso o básico. E o básico nóis não tá tendo, é preciso buscar, então, mais equilíbrio, mais dignidade, mais justiça social.


*


Caruaru. Anos 2000. Minha cidade tem muita cultura e muita beleza feita por humanos, quanto mais o tempo passa, mais consigo reconhecer sua importância cultural. Mas ali, com meus 11, 12 anos, muito do que me fascinava eram as coisas que vinham de fora. A internet desabrochava diante de nós, nos entusiasmando com essa loucura que estudávamos nas aulas de geografia, víamos escrita nos livros didáticos e escutávamos nos programas de televisão: a globalização. Eu, que demorei a ter acesso à internet em casa, me deslumbrava entre o abrir e fechar da bandeja do aparelho de dvd. Fosse para assistir em replays infinitos minhas séries preferidas ou para ouvir listas e listas de músicas em mp3, gravadas em pastas por meu irmão ou minha irmã, nestes processos de conhecer a cultura de outros lugares, as outras línguas me deixavam extremamente curiosa.


Eu ensaiava falar outras línguas ainda que não as soubesse, ruminava sonoridades que me soavam parecidas, lia os livros didáticos de inglês abandonados lá em casa, livros velhos, dos anos 80, com atividades que envolviam fitas cassetes que já não existiam.


Lia as legendas dos dvds, relia, parava, escrevia, ia atrás no dicionário de palavras desconhecidas. Meu acesso aos estudos de inglês teve muitas facetas um tanto dramáticas, a la novela mexicana (como parecem ter sido alguns dos episódios de minha infância) e entre brigas entre meu pai e meu irmão para que eu tivesse direito ao estudo de outras línguas, professores de inglês com tendências pedófilas e otros dramitas más, acabei me tornando autodidata.


O inglês é a única língua estrangeira na qual me considero autodidata. E acredito que muito desse caminho foi trilhado por uma espécie de força ingênua infantil que é das coisas mais poderosas de que tenho notícia.


E me orgulho desse caminho de cá até lá. Ao longo dos anos, o aprender de línguas estrangeiras tomou muitos formatos diferentes, aprender espanhol foi diferente de aprender alemão, que foi diferente de aprender francês, que foi diferente do aprender italiano, etc, etc.


Cada uma dessas descobertas linguísticas (muitas vezes simultâneas) foi acompanhada de suas próprias reflexões e complexificações. Seja lá qual for o motivo pelo qual se queira aprender uma nova língua, eu não gostaria de fazer menos que incentivar esse aprendizado.


Vejo muitas motivações diferentes para que aprendamos línguas novas, sendo o tesão pelo próprio aprender de uma nova língua, uma das coisas que mais me move, por exemplo. Existem diversos, infinitos motivos para querer entender a língua do outro, querer se comunicar. O que eu descobri que também é capaz de me movimentar ao longo do tempo é: quero ajudar pessoas a terem também essa experiência se assim elas desejarem. Então, vejamos o que pode ser feito para facilitar este acesso.


(foto de mestre vitalino por Pierre Verger)



Sim, a justiça linguística vem dar seu alô. Mas ó, penso no caminho contrário (o aprendizado de línguas dominantes) como algo que também pode nos servir enquanto ativistas. Não vamos parar de lutar, conseguir e garantir acessos de línguas minorizadas nos espaços de decisão, não vamos permitir que figuras importantes para as mudanças de paradigmas de nossos tempos não sejam escutadas por conta de suas línguas e da pouca vontade do mundo dominante de ouví-las.

Vamos sim, buscar que as pessoas possam se expressar em quaisquer das línguas em que se sintam mais confortáveis e que não percam acesso a oportunidades por conta disso. Vamos criar ambientes mais abertos a promover trocas que são constantemente reforçadas como sendo importantes (por exemplo, a troca cultural e intelectual mais equilibrada entre Sul e Norte Global, para garantir novas formas de vida). Vamos ter que deixar o cenário linguístico de nossos tempos cada vez mais diverso, inclusivo, fragmentado, traduzido e ultra traduzido, novo, cada vez mais heterogêneo. Temos de ir de encontro com a tendência normativa, homogênea e extremamente aburrida da dominância de algumas línguas.


E, o alargar dessa busca por justiça linguística, o alargar desse caminho conceitual que pode nos expandir o pensamento de todo o resto, pode vir também acompanhado de nós: pessoas que querem também atravessar o caminho inverso, há algumas de nós que desejam aprender as línguas que dominam. Seja pela curiosidade, pela abertura de novas possibilidades, seja para enfraquecê-las a nível político. E eu luto por nosso acesso também.


Meu tesão vem do aprender novas línguas, pensei, enquanto subia a ladeira de volta à casa, em minha bicicleta. Não importa se você fala uma língua dominante e quer aprender outra língua dominante, não importa se você fala uma língua dominante e quer aprender uma língua minorizada, não importa se você fala uma língua minorizada e quer aprender uma língua dominante, não importa se você fala uma língua minorizada e quer aprender outra língua minorizada, não me interessa a direção do vetor aqui: eu quero te ajudar nessa missão. Hehehe, porque eu sou romântica com isso, lembra?


E aí sinto propósito, de querer colocar mente, coração e mãos a postos para deixar esse caminho possível e amoroso para mais gente. Só que, sendo o cenário em que estamos, o de extrema importância do reconhecimento de outras línguas não-dominantes para a justiça social, alguns detalhes devem ser levados em consideração.


Estamos em desvantagem. Se vamos aprender juntas uma nova língua que possa nos abrir novos campos de trabalho, de estudo, de entretenimento, de troca humana, de percepção da realidade, que possamos voltar nossa atenção (inclusive enquanto aprendemos) para o modo como o fazemos e como podemos utilizar esses conhecimentos a nosso favor e a favor dos nossos.


E isso acredito ser também capaz de fazer. Com tropeços, seguramente, porque a construção de meu conhecimento social geralmente envolve eles, nunca parou e não vai parar, mas talvez com um tanto daquele entusiasmo ingênuo infantil que é capaz de nos levar além.


Precisava me lembrar que esse caminho de respeito às linguagens carrega muitos sentidos e direções <3


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